Entrevista com Jamil Assis, do Instituto Sivis
Cidadania: palavra mágica que pulula em discursos a cada dois anos no Brasil, em época de eleições, associada à escolha dos representantes numa democracia. Mas, efetivamente, o que ela é? Até onde vai a cidadania, além do voto?
Cidadania vem de “civitas”, do latim “cidade”. Envolve a participação e inserção social em diversas esferas de decisões, direitos e deveres voltados ao bem comum. A atuação dos cidadãos terá reflexos em todas as camadas da vida em sociedade. Um maior engajamento e acompanhamento das decisões que impactam a vida coletiva são grandes desafios nas democracias modernas, especialmente no Brasil.
Em sua obra “O Futuro da Democracia”, Norberto Bobbio, filósofo, historiador e escritor italiano do século XX, apresenta a democracia como um processo dinâmico, em constante transformação. Sua maior profundidade e qualidade estariam no equilíbrio entre os ideais e a realidade. Dentre as práticas ainda deficitárias no ambiente democrático, e determinantes para sua evolução, Bobbio elenca:
- a importância de se estender a democracia política para a democracia social;
- a necessidade de combater o que denomina poder invisível, ou seja, de se realizar o princípio da publicidade; e
- a fundamental promoção da educação para a cidadania.
Nas últimas décadas, ao sabor dessas transformações, diversos grupos e experimentos geraram inúmeras ferramentas e dados para colaborar com a construção e a evolução da cultura democrática e de um comportamento mais cidadão. A Latinobarómetro, ONG dedicada a pesquisas anuais de opinião pública sobre as democracias da América Latina, demonstrou que, em 2018, os níveis de confiança dos cidadãos em seus regimes democráticos chegaram aos piores índices desde 1995, quando esse trabalho teve início. O resultado apontou ainda um grande sentimento de indiferença com os regimes de governo. Na vida do brasileiro, em especial, estão os piores números da pesquisa, como por exemplo, um nível de confiança interpessoal – a confiança no outro – de 4%. Isto é, o brasileiro não confia em ninguém. E a cidadania está calcada na confiança e na ação coletiva.
Movimentos baseados na micropolítica, descentralizando a visão da política formal como historicamente as sociedades são administradas, estão modificando muitas práticas. Particularmente no Brasil, algumas iniciativas vêm sendo implementadas em determinadas regiões, focando no âmbito local. Projetos de longo prazo que buscam entender processos e criar soluções que possam ser replicadas em diferentes regiões, respeitadas suas peculiaridades.
Um bom exemplo é o Programa Cidade Modelo, em Curitiba. Trata-se de um projeto que busca fortalecer a cultura democrática e gerar impacto global, por meio de uma metodologia de impacto coletivo, unindo lideranças comunitárias e viabilizando plataformas colaborativas. O objetivo é, a partir de uma experiência local, construir uma sociedade mais honesta, solidária e democrática.
O projeto é articulado pelo Sivis, instituto de Curitiba que foca em uma visão de futuro, buscando a transformação através do trabalho coletivo com um olhar profundo para as causas dos problemas de uma região, através de práticas que possam ser levadas a outras regiões.
Jamil Assis, integrante do Instituto Sivis e gestor do Cidade Modelo, conversou conosco sobre a importância da cidadania na cultura democrática.

CRC
Como podemos exercitar a cidadania de forma mais ativa, para além do voto?
JAMIL
Essa é uma briga antiga. O voto é muito simbólico, mas precisamos ver a política como um processo mais constante, de construção diária. Por exemplo, encararmos o dever de cidadão como o de cuidar do meu redor, me preocupar com o que está acontecendo no bairro, com os vizinhos, os problemas coletivos. Um grande exemplo de cidadania é o pessoal de um bairro que tem alguma dificuldade e se mobiliza pra resolver a questão. Esse movimento gera um processo que a gente gosta muito: o pessoal conversar mais pra resolver os problemas locais, hiperlocais, de onde cada vez mais saem lideranças políticas. E essas lideranças idealmente são aqueles candidatos que vão lá na frente fazer parte do processo político formal. Claro que não precisa ser necessariamente este o caminho. Mas tem que cuidar muito com o líder político que não surge tão organicamente, os muito distantes da convivência do dia-a-dia.
CRC
Então podemos encarar a política como um processo, uma mobilização constante que tem uma dimensão local, essa coisa do bairro, dos laços que se constroem na vida do cidadão. Pode-se dizer que existe um processo formal e um processo informal político?
JAMIL
Sim, certamente não é só o elemento local que constitui a política. Mas hoje o que mais falta é justamente ir para o local da vivência, do meu entorno. Aqui no Instituto Sivis construímos uma ferramenta para avaliar a democracia no nível local. Há muitos indicadores e pesquisas para dimensionar a democracia nos países, mas vemos poucas avaliações e dados para ajudar em decisões no nível onde vivemos, onde conhecemos as pessoas, onde precisamos resolver os problemas da nossa cidade, no nosso bairro. É muito bacana reviver um pouco esse sentido da política, da palavra original “polis/cidade”, da região onde eu estou.
CRC
Essa questão do hiperlocal versus uma conexão global, dadas as ferramentas de comunicação de hoje em dia, tem uma dimensão diferente do que era. Esse hiperlocal que você fala lembra também um local do hipertexto, do hiper no sentido de conexão. Poderia fazer essa ligação, essa dimensão local conectada?
JAMIL
Vemos o local como a coisa mais global que existe. Todo mundo vive em algum lugar. E é uma das vantagens de se trabalhar com inovação no ambiente local, pois é onde mais conseguimos prototipar, com maior proximidade. Você testa e aprende no dia-a-dia. E uma coisa importante é que exige menos margem de polarização. Conseguimos resolver problemas de forma muito mais prática: buracos na rua, iluminação pública, até construção de equipamentos. Claro que há um todo por trás que pode trazer debate ideológico, mas todo mundo concorda que tem que tampar o buraco, tem que iluminar a rua, tem que construir equipamento de diversão e de cultura. É muito mais fácil convergir situações super locais. E isso facilita muito a inovação. São muitos pontos de vista diversos olhando para um problema específico que é comum a todos.

CRC
E pensando no cidadão, essa dimensão local também permite um empoderamento do que é meu, da minha localidade, do que é meu problema também. Adquirindo essa perspectiva de proximidade conseguimos agir mais facilmente em cima daquilo.
JAMIL
Numa série de atividades que promovemos em Curitiba esse ano, envolvemos mais de 115 lideranças de todas as regiões. Entrevistamos desde políticos e lideranças de bairros a líderes informais, e ouvimos algo muito marcante: se limitamos a nossa responsabilidade, limitamos também o nosso impacto. Não tem como fazer uma grande transformação, ou mudar o mundo, ou querer um país, uma cidade ou um bairro melhor, se não assumirmos responsabilidades. A palavra é responsabilização. Co-responsabilidades, responsabilidades comuns que têm a ver com esse empoderamento. Não podemos continuar terceirizando a responsabilidade como historicamente fazemos no Brasil. Cada vez mais percebemos que o poder de mudar está conosco. Nos vermos como parte do problema é necessário para conseguirmos implantar algum tipo de solução.
CRC
“Quando limitamos nossa responsabilidade, também limitamos o impacto que podemos gerar com nossas ações”. Interessante essa perspectiva.
JAMIL
Ela ressoou muito, organicamente. É uma frase bem marcante mesmo.
CRC
Muitas vezes temos uma postura de responsabilizar o outro. Na verdade todo mundo tem sua parcela de responsabilidade, e parte dela é acompanhar, certo? Você tem exemplos de instrumentos democráticos que possam ajudar a população a acompanhar as decisões políticas, a participar mais efetivamente, e então tomar um pouco mais para si essa responsabilidade?
JAMIL
Temos aplicativos que facilitam a participação, agregação de dados de eleições e outros indicadores para acompanhar no dia-a-dia, ranking de políticos, entre outros exemplos. O Transparência Brasil criou um aplicativo pra monitorar obras públicas em que se pode verificar o orçamento, tirar fotos, ajudar na fiscalização a partir da sociedade civil. O Observatório Social do Brasil tem grupos de voluntários que monitoram as licitações dos municípios. Existem também ferramentas mais institucionais, como um app do 156 que reúne informações da prefeitura, em Curitiba. O próprio poder público tem percebido os espaços de inovação. Os Portais de Transparência existem por Lei de Acesso à Informação e devem ser acessíveis. Se você não encontrar uma informação, pode pedir que vai ter uma resposta. Em Curitiba temos um braço do Ministério Público de apoio a comunidades. São inúmero os modelos, mas o mais importante de tudo é irmos atrás do que nos toca. Às vezes o que me importa é o funcionamento da escola aqui do bairro. Às vezes é fiscalizar as sessões da Câmara de Vereadores. As ferramentas abundam. Vale parar e pensar o que eu quero que funcione melhor e ir atrás daquilo. Aí você está se responsabilizando, está começando a ter um impacto positivo.
CRC
Gostei disso: ir atrás do que nos toca. É o que nos faz sair do lugar de conforto e agir. E como conseguimos estimular no dia-a-dia a cultura e a educação política para mais pessoas, pra se engajarem um pouco mais sem que isso signifique assumir um viés ideológico, a fim de atingir a parte mais pura da política e da cidadania?
JAMIL
É um desafio de muitos anos. Temos apostado muito na repetição dessa questão do local. É o buraco na frente da minha casa. É a falta de merenda na escola, algo que vai tocar a vida dos pais daquelas crianças, sejam mais de esquerda ou mais de direita, e eles vão se importar em fazer aquilo melhorar. Os problemas da nossa comunidade são um caminho de entrada muito prático de engajamento na política do dia-a-dia. E muitas vezes a solução não é criar mais uma audiência pública ou mecanismos institucionais. Deixamos de aprender como ser um melhor cidadão porque nunca participamos. O conhecimento político de como funciona o governo tem que ser passado como conteúdo para crianças e jovens. Como funcionam as diferentes instâncias, qual a responsabilidade formal de cada órgão etc. Se forçar a participar um pouco é o melhor caminho pra começar a aprender, a se conscientizar. Muita gente tem vergonha ou preguiça de participar da reunião do condomínio, por exemplo. Mas ali está a primeira oportunidade de fazer política de um jeito saudável. Ali você pode influenciar o orçamento do condomínio, de acordo com o que você tem necessidade. É uma reunião coletiva, trabalho em conjunto, uma grande oportunidade de aprendizado. Você pode participar só para ouvir, mas ali você já começa a aprender como funciona na política.
CRC
No Instituto Sivis vocês criaram um índice da Democracia local, e você falou em metodologia, laboratório, teoria e prática, diagnóstico sistêmico. O que é e como funciona esse laboratório?
JAMIL
Nossa missão de longo prazo é ajudar a construir um Brasil mais colaborativo, honesto, democrático. Ela é muito ambiciosa e muito complexa. Precisamos entender muito bem as causas-raízes para esses déficits de cultura democrática. Vimos que valia muito a pena trabalhar de maneira experimental, tirar das vivências locais aprendizados que sirvam em outras escalas. Esse é um foco específico da minha atuação pelo programa Cidade Modelo, em Curitiba. Ele visa a ser um laboratório para construir mais colaboração e confiança, pedaço central de uma cultura democrática. A ideia é mobilizar coletivamente, unir lideranças locais de diferentes regiões e de diferentes degraus e experiências, construindo soluções ou fomentando as já existentes, criando indicadores e avaliando o impacto dessas ações. E tirar dois aprendizados:
– como melhorar localmente e fazer cada vez mais a nossa cidade se desenvolver com uma cultura mais democrática;
– como o aprendizado dessa prática serve para uma atuação nacional e internacional.
São diversos temas, e usamos uma abordagem sistêmica. É natural pensarmos “o que nos impede de confiar mais uns nos outros?”. Hoje o Brasil é o país com o menor índice de confiança interpessoal do mundo. As razões variam entre a Segurança Pública, a percepção de segurança ou a pouca manutenção do espaço público. Isso pode ter a ver com a educação, ou com o convívio segregado de outros grupos sociais. São fatores muito diferentes entre si e muito complexos, e já existem especialistas e projetos em todas essas temáticas. Então fazemos um diagnóstico sistêmico, olhamos como os fatores se conectam. Quando um especialista em um tema está muito focado no método, no conteúdo, nós apoiamos esse tipo de entendimento mais profundo. Mas nossa maior ambição é conectar o impacto desse processo com a Gestão Pública. Esse é o olhar mais sistêmico, dar um passo atrás e ajudar atores e parceiros a olharem como o que estão fazendo influencia outros temas e outras partes da comunidade. E tirar disso as lições, as causas-raízes do porquê certos problemas persistem no Brasil.
CRC
Uma comunicação eficiente tem melhorado o trato do setor público com a população. Há exemplos de projetos com bons resultados se utilizando das redes sociais e aplicativos. Isso pode ser um canal efetivo pra gerar maior engajamento da população? Que práticas podem ser replicadas como modelo para o fortalecimento da democracia?
JAMIL
A comunicação é um elemento essencial da vida comunitária. A própria palavra exprime “ação compartilhada”, refletindo a ideia de que ela é, por natureza, uma atividade entre pessoas. Potencializar e fazer a comunicação mais eficiente é dar mais vida à participação, estendendo o senso de pertencimento e de responsabilidade a mais pessoas. Há várias ações, concretizadas a partir da mobilização, que mostram o poder de uma comunicação clara e positiva no fortalecimento da democracia. Por exemplo, os Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEG) dos bairros Água Verde e Capão Raso, em Curitiba, criaram grupos de WhatsApp para os moradores trocarem informações, junto à polícia, sobre a segurança no bairro. O interessante é que o grupo tornou-se uma ferramenta para além desse propósito, gerando mobilização e auxílio mútuo até em assuntos cotidianos.